domingo, 27 de abril de 2008

Depois de ontem

Minha cabeça dói. Meu corpo dói. Uma incrível vontade de ficar na cama. Que dia é hoje? Que horas são agora? Manhã ou tarde, não faço idéia. Não sei por quantas horas eu consegui dormir. Talvez tenha sido apenas minutos. Não tenho conseguido pregar os olhos. Tenho medo de sonhar com ela indo embora. A cama ficou grande demais. Vazia demais. O teto está familiar demais. O tic-tac presente demais. No armário, agora cabem minhas roupas e sobra vazio. Nada me faz companhia. Cinqüenta e seis metros quadrados nunca foram tão largos. Nunca vi tantos espaços. Nunca vi tantos cantos. Nunca vi tantos vazios dos quadros nas paredes. Nunca vi tantos cabides vazios no armário. Nunca vi tanta luz entrar pelas janelas sem as cortinas. Nunca ouvi tanto silêncio. Um apartamento pequeno dias atrás. Um apartamento enorme agora. Após seis anos, sinto ter perdido o rumo. No ar ainda está o seu perfume. Sinto falta dela. A estante também já não é mais a mesma. Seus livros já não se deitam por lá. Seus CDs também não. No dia anterior ao de ontem, eu bebia nosso vinho preferido. Nosso shiraz. Sempre havia uma garrafa em casa. Quando não eu, ela comprava. Bêbado, clamava sua volta. Eu ainda acreditava em sua volta. O retorno de quem ainda não havia partido do meu peito. Ela entrou por aquela porta tantas e tantas vezes em meio aos meus delírios alcoólicos. Dizia-me que estava de volta para ficar para sempre. Sempre. Eu queria ouvi-la para sempre. Tanta segurança minha. Inútil segurança. Como pensar que ela não precisava me ouvir, me sentir. A minha presença bastava. Está ali com ela já era prova de que ela era mais especial que qualquer outra. É tarde agora, que foi embora. Sem ao menos ouvir que eu a amava. Escondi isso de mim por tanto tempo. Sem flores, nem beijos, ela se foi. Preferia pensar que ela era apenas alguém com quem compartilhar o teto. Alguém bem tranqüila, de bom gosto e bonita. Alguém de olhos brilhantes, que me atiravam olhares profundos e ternos. Achava aqueles olhares piegas. Pareciam quererem prender-me. Angustiava senti-los sobre mim. Minha liberdade não poderia ser colocada em risco. Nunca, nunca. Estava para nascer mulher a quem eu realmente entregaria minha atenção única e exclusiva. Agora sinto falta... Já liguei para seu número. Não atende. Em que canto do mundo ela está agora? Eu quero que ela volte. Trocaria os meus três desejos pela volta dela, se um gênio encontrasse. Eles saíram em lua de mel. Ela se casou. Meu melhor amigo a levou para bem longe de mim. Não notei a troca de olhares. Nem os bilhetes escondidos. Muito menos os e-mails. Bem debaixo do meu nariz. Ela me disse que me amou muito, mas o seu amor não suportou tanta distância. Tanta indiferença. Juro que não notei que a perdia dia-a-dia. Juro que não notei a decepção em seus olhos. Um dia ela pediu um filho.Achei um absurdo. Ainda tinha muito que viver antes de ser pai. E ela também não tinha cara de mãe. E não dava para imaginar uma criança, atrapalhando nossas viagens, ainda que não viajássemos. Tanto egoísmo. Vou morrer sozinho? Talvez. As decisões foram erradas. Jamais pude imaginar que ela precisava de doces palavras para alimentar o seu sorriso. Quando a conheci, ela sorria na mesa com as amigas. Estava feliz e aquela felicidade atraiu-me. Era um porto seguro para minha acidez. E assim, partimos felizes em uma viagem que durou seis anos. Nem sempre estávamos no mesmo vagão daquele trem. E foi assim que ele a tirou de mim. Meu melhor amigo. Aproveitou-se da minha falta de tato, da minha cegueira, da minha surdez. Depois de ontem, minhas esperanças partiram junto com sua nova vida. Quando a vi se casar com ele, tive certeza de quão tolo tinha sido. Que nem aliança quis por no dedo. Que nem quis dizer na tristeza e na doença.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Salto

Sem sono, fiquei espiando a cidade do alto. Vazio. Silêncio. Um barulho de um carro, ou outro. Latidos de alguns cachorros da vizinhança. Ronronar de gatos, talvez em algum telhado. Brisa gelada trazia a sensação da noite. O cheiro estava bom. De olhos cerrados, meu silêncio foi interrompido por passo após passo. “De quem seria aquele som? Alta ou baixa? Gordinha ou magrinha? Pelo caminhar eu diria que tem um pouco mais de 1,70 e magra. Talvez bem magra”, pensava comigo. Depois de ouvir tantos tic tics naquele piso do trabalho, um granito verde sujeira, não poderia não deixar de aprender o comportamento das mulheres e o salto. Havia diferença entre a relação peso, altura e salto. O som poderia ficar mais agudo ou grave conforme o peso e altura da dona. Só faltava saber que aparência tinha. “Loira? Morena? Mulata?” Ruiva! - quando abri os olhos. E de longos fios. Ainda não dava para saber se bela àquela distância, mas só poderia ser alguém de bom gosto e bela. Vestida em um casaco de náilon que lhe cobria até os joelhos... E uma bota, de salto longo e fino, de algum material que lhe permitia colar em sua pele... Pelo brilho, talvez fosse vinil... E era vinil... De que lugar estava vindo ou para onde estava indo? Esta pergunta ficou sem resposta. As botas pareciam ultrapassar a altura dos joelhos. Não dava para ver um pedacinho sequer de pele da sua carne magra. Suculenta? Eu em minha mente respondia sim. Desejava sim. Imaginava sim. Ah... eu queria aquela mulher. Seria ela uma boa vítima para a saga dos meus desejos? Subia a rua apressada. Minha mente também se apressava em pensar algo, antes que ela sumisse caminho a fora e talvez não mais a identificasse em rostos que se apresentassem na multidão. “Que tal colocar uma velha fantasia em prática?!” Eu ainda tinha aquela máscara de esqui e o revólver de brinquedo. Na minha época, revólveres de brinquedo bem parecidos aos reais era um excelente brinquedo. Ganhei de meu padrinho, guardei-o até hoje. Nunca quis dar a ele o destino do lixo. Mesmo quando a ex insistia para que eu me livrasse dele. Cansei de dizer que campanha de desarmamento era só para armas reais, não para a minha réplica de um três oitão com cabo Madrepérola. Casaco, luvas, moto, máscara, revólver... É isso! Apanhei tudo e desci correndo. Lembrei antes de pegar fitas adesivas para colar nas placas da moto. A brincadeira poderia ficar séria se ela pudesse me identificar depois. Polícia na cola de um cidadão apenas safado era tudo que eu não queria. Fitas nas placas. Máscara no rosto. Luvas nas mãos. Revólver na cintura. Saí da garagem como um louco. Parecia que a brisa trazia o perfume dela, então pude farejá-la. Meus ouvidos também podiam ouvir o som de seus saltos, já um pouco distantes. Mas isto facilitava muito. Perfume mais forte, som mais alto. Encontrei-a duas esquinas depois. Não tive dúvidas do que deveria fazer, encorajado pelo vazio das ruas e o tesão. Girei a moto rapidamente em sua frente. Ela assustou. E parou... Apontei a arma para ela e disse "Quieta!, nem pense em gritar! Ou leva um pipoco! Ouviu dona?" De fato bonita. Muito até. Ela levantou os braços para cima e sacudiu a cabeça que sim. Bolinei um pouco. Parei quando notei que estava na fronteira entre um homem realizando uma fantasia e tornar-me um bandido a ser identificado pela polícia. Mas alguma lembrança eu ainda precisaria carregar comigo. E de repente poder continuar aquela brincadeira de forma consentida. Peguei o seu casaco de náilon, subi na moto e voltei para casa. Como seria sua voz?