quinta-feira, 24 de julho de 2008

Ela

Ela sempre soube o que fazer. Sempre tão direta. Tomava decisões à queima-roupa. Acredito que calculou cada detalhe do que sinto agora. Consigo imaginá-la pensando como eu estaria agora. Sentado em uma cadeira, sozinho, bebendo o último gole de vinho. Confuso. Arrependido sem admitir. Quando foi que pensou em tudo? No último dia em que a vi, ou meses antes? Se no último dia, é surpreendente por ter iniciado tão rapidamente minha nova vida. Se meses antes, é surpreendente por ter previsto o que ocorreria e preparar-se sem demonstrar o menor ardor, o menor tremor, o menor fervor. Não duvido de sua capacidade. Seja qual for a alternativa, ela tiraria de letra. Quando casei-me com ela, já era uma escritora bastante conhecida e de posses. Foi em regime de separação de bens. Dizia que a comunhão separava mais do que aproximava. Eu aceitei assim. Não me arrependo. Nunca faltou-me algo enquanto moramos debaixo do mesmo teto. Ela não me sustentava. Continuei trabalhando na mesma agência em que a conheci. Sou publicitário. Nós a convidamos a participar em uma campanha. Suas idéias. Seu estilo. Seu perfume. Seu sorriso. Seus olhos. No dia seguinte, acordei em uma cama que tornou-se bastante conhecida. A mesma durante três meses. Não tinha o que esperar. Disse que queria casar-me. “Com quem?”. “Com você”. Ela sorriu. “Sim”. E cama foi a mesma por mais cinco anos. Conforto. Apenas não pagava contas que não feitas por mim. Não fazia compras que não fossem de minha vontade. Ainda recebia mimos vez ou outra. Na verdade ela sabia cuidar de mim. Ela sabia dar-me atenção. Achava exagero, mas era na medida. Não percebi. Não dei valor. Bertha era a nova colega de trabalho. Bonita. Muito bonita. Dona de um charme tão feminino. “Inha”. Lindinha. Cheirosinha. Meguinha. Charmosinha. Encontros íntimos e fortuitos. Pedidos para uma maior freqüência. Ela exigia mais. Eu queria mais. Era um belo apartamento de quatrocentos metros quadrados. Decoração simples, de ar sofisticado. Prática como minha esposa. Sem muitos empregados, que só apareciam em alguns dias da semana para fazer o serviço combinado. Isso nos permitia maior privacidade. Em uma noite, chegava perturbado. Uma amante. Eu não estava feliz. Uma esposa dedicada. Eu não queria vê-la. Dúvidas. Muitas Dúvidas. Bertha queria mais. Eu também. E ela? Sempre me recebendo tão bem, quando em casa chegava. Eu áspero. Ela simpática. Eu áspero. Ela mais simpática. Eu áspero, desviei-me de seu carinho. Ela mais simpática comentou algo. Eu mais áspero não ouvi e disse querer ficar sozinho. Ela calma. "Ei, esta não deveria ser aquela parte em que você deveria dizer que quer ir embora? Talvez esteja com receio de dizer-me. O que te impede". Fiquei zonzo. Ela sabia? Como? Sempre fui tão discreto! “Se preferir, hoje mesmo pode ir para outro lugar. Apenas deixe o endereço para pedir que alguém entregue seus pertences”. Conversamos. Ela ofereceu alugar um apartamento por seis meses. Informou que cuidaria de tudo para que me fosse entregue as chaves amanhã mesmo. A noite já estaria em um novo lar. Duvidei. Ela disse para não duvidar. Aceitei. Ela dormiu no quarto de hóspedes. Quando acordei, ela já não estava. E não voltei a vê-la. Fim de tarde, ainda no trabalho, recebi de um entregador um envelope e uma caixinha. No envelope estava o pedido de separação e o contrato de aluguel de um apartamento em área de classe média alta. Ambos para serem assinados, originais e cópias. Assinei e devolvi ao portador do nosso fim. Uma cópia de cada documento foi deixada comigo. Na caixinha estava as chaves e o endereço do apartamento. Da noite para o dia estava separado. Quando entrei, notei que ela conhecia-me bem demais. Não sei como conseguiu, mas o apartamento fora entregue mobiliado de uma forma que adorei. Sobre a cama, uma pasta com notas fiscais. Todos os móveis foram comprados em meu nome e naquele dia. Como conseguiu? Como fez o tempo ser suficiente? Nem mesmo deixou de dar-me uma adega climatizada com quatro garrafas dos meus vinhos prediletos. Liguei para Bertha. Ela passou a noite comigo. Tomei o cuidado de deixar claro que seríamos namorados, mas não mais que isso. Queria vê-la sempre, mas não todo dia. Em cada um dos cento e oitenta e três dias lembrei ela. Tenho certeza que cada detalhe daquele apartamento foi calculado para este fim: arrependimento. Alô? Rafaela?