sábado, 24 de maio de 2008

Cena de cinema - parte II

Nina enxuga os olhos com uma das mãos. Olha no retrovisor. Vê a mancha de maquiagem borrada. Alcança a bolsa no banco ao lado. Abre a bolsa sem tirar os olhos da estrada. Pega o lenço. Tenta limpar o rosto. Esfrega um pouco. Olha mais uma vez no retrovisor. Esfrega mais. Contenta-se com a imagem de si que vê. Lembra-se de como conheceu Beto. Um homem bonito, de sorriso ladino, olhar seguro e atos escusos. Seu irmão também não era flor que se cheirasse. Até hoje não sabe o que havia no envelope, muito menos no pacote. Seu irmão viajou logo depois e não retornou. Já faz quase um ano. Não era algo que incomodasse. Não importava o que faziam ou deixava de fazer. Beto jamais comentou sobre Pedro. E nunca soube que Pedro e ele se conheciam até o dia da troca das encomendas. Muitos amigos de seu irmão iam à sua casa, mas Beto nunca esteve lá. Logo depois que Pedro viajou, ela procurou Beto para continuar o que começou naquele dia. Ele pareceu gostar de sua presença e ela foi ficando. Ainda que em todas as manhãs saísse de casa, carregando uma maleta e retornando só à noite, ele voltava para ela. Era assim que pensava. Era assim que preferia pensar. No início, ouvia o barulho do carro e já corria para a porta. Quando ele a abria, dava de cara com ela. Isso já era esperado, mas mesmo assim fazia-lhe carinhos, às trazia um presente. Lembrava-se da sensação de ser suspensa no ar para receber um beijo. Quase sempre terminavam na cama antes do jantar. Depois não. Chegava quieto, quase sempre de semblante sombrio. Afastava-a quando se aproximava. E só com muita insistência um beijo era estalado na testa. O que mais doeu foi ouvi-lo dizer que sentia saudade de quando tinha a casa só para ele. Liga o velho rádio. Há uma canção alegre conhecida. Põe-se a cantarolar. Anima-se um pouco. Coloca a mão esquerda fora da janela para sentir a brisa do caminho. Depois deixa apenas o cotovelo para fora da janela. A estrada é longa e não faz idéia de onde vai parar. Vê uma placa, a primeira em horas. Pára no acostamento. Pega o mapa. Beto acelera tudo o que pode. Quer alcançar Nina e trazê-la ainda para o jantar. Pensa em ele mesmo arrumar a mesa. Colocar a toalha para ocasiões especiais, usar algumas velas. Cozinhará macarrão e fará o molho que aprendeu com sua falecida avô. Ela esperaria na sala, com o seu cheiro de flores. Iria servi-la de vinho. Conversariam um pouco durante o jantar. Muitos risos e sorrisos. Ao final, pensa pedi-la em casamento. Como um perdigueiro, observa a paisagem árida. Talvez já devesse ter alcançado Nina. Preocupa-se. Nina abre o mapa, localiza a estrada em que está. Sabe que a vinte quilômetros encontrará um posto. Já será noite. Poderá abastecer o carro. Dez quilômetros à frente estará a entrada de uma cidade. Poderá comer e descansar por lá. Fecha o mapa. Liga o carro e retorna à estrada. Beto já deveria ter alcançado Nina na estrada. “Ela é bem prudente atrás de um volante. Tem o hábito de manter-se em velocidade controlada”. Desconfia pela primeira vez que tomou o rumo errado. “Outro carro deve ter passado depois de Nina. Ela virou à esquerda. E essa agora!” Freia o carro. “Droga! Droga! Droga! Voltar levaria muito tempo”. Aí é que se perderia de Nina. Só havia um jeito: ver onde a estrada da esquerda levaria e contornar o caminho. Nina não dirigiria a noite. Talvez parasse em algum lugar para dormir. Confere no mapa o caminho. Ele procuraria por todos os hotéis até achar o carro de Nina. Se fosse bem rápido, talvez a encontrasse ainda dormindo. Então faria uma surpresa. Liga o carro.

domingo, 18 de maio de 2008

Terças-feiras

O mundo está cheio de terças-feiras. Algumas das nossas não foram boas. Não foram mesmo. Sempre houve um D de desventuras. Hoje é terça-feira. Pensei ter visto o seu rosto, mas simplesmente decidi olhar para o outro lado da rua. Um menino e sua mãe sorriam. Ele carregava um carro novo, recém-saído de uma loja de brinquedos. Foi como andar pelo estacionamento fazendo pose de bacana... Para ninguém ficar sabendo que esqueci onde estacionei o carro. Da mesma forma, queria que ninguém ficasse sabendo que eu não esqueci você. Senti um breve desespero em meio a uma roda de imagens fotografadas na mente, que giravam e giravam em um carrossel de recordações. Voei ao nosso passado naquele avião de papel que fizemos. Aquele avião, que pegou uma corrente de ar, voou tão alto e não voltamos a vê-lo. Apenas imaginamos por onde ele pode ter ido e como seria se tivéssemos ido junto com ele a um lugar novo e bonito. Um lugar calmo, de sabor feliz e cheirando a emoção. Senti saudade. Tive medo de que você não se lembrasse de mim e nem de nós. Qual teria sido a viagem dos nossos sonhos? Depois daquela outra terça-feira, eu não voltei a ligar. Você também não ligou. Eu queria ter dito, você também não disse. O que poderia ser mudado, se não tivéssemos medo de nada? Se você prefere, eu posso dizer a verdade. A verdade não foi dita, apenas as percepções. Dizem que a caneta é mais poderosa do que a espada... Mas não mais do que a boca! Que jogo bobo foi este, não? Não combinamos as regras. Seguimos jogando desde o primeiro minuto em que um de nós disse algo que o outro não gostou de ouvir. Para dizer a verdade, nem lembro o que foi. Parece agora tão sem importância, porém serviu apenas para contar mais um ponto. Um após outro. O placar foi se afastando do zero a zero. Pontos se acumulando junto com as mágoas. No mesmo balde. Saímos jogando "faça o que o mestre mandar" cada vez mais. Vez ou outra eu era o mestre. Vez ou outra era você. Você passou. Senti a brisa do seu movimento carregada de seu perfume. Você não mudou o perfume, nem falou comigo. Eu também não falei. E por que você não falou? O que você pensou. Vontade de correr passos atrás e parar apenas em sua frente. E te convidar para tomar um café. E dizer o que não foi dito. Existem tantos obstáculos que impedem de eu realizar esta minha vontade. Só não consigo enumerar quais. Começo no orgulho e paro no medo logo em seguida. Apenas os sinto. Mudo de idéia. Calmamente fui observando com atenção os lugares por onde você passou. Um dia andamos juntos, quando a direção era mais importante que a velocidade. Queria ter experimentado coisas novas. Andado por outras ruas. Eu me apaixonaria por você novamente. Se encontrasse um vidente agora mesmo, eu perguntaria se teria a segunda chance com você. Desta vez eu perguntaria qual o melhor livro que leu? O filme predileto. Qual a saudade de infância? Em qual enrascada se meteu? Não sei a descrição de um dia perfeito para você. Nem o que você ainda não fez e quer fazer. Não tivemos o nosso fim de semana chuvoso. Semana passada, um amigo contou-me sobre um site novo. Há muitas coisas pelas quais você se interessaria por lá. Eu lembrei você. Queria ter contado a você hoje. Sabe qual é o problema? Não sabemos aceitar críticas destrutivas. Então por que precisávamos nos destruir? Nem é fácil se desculpar com uma secretária eletrônica.

domingo, 4 de maio de 2008

História desconexa

Pôs o segmento convexo
à prova o meu reflexo
com sentimento sem nexo,
sem reconhecimento flexo.
De órgão deflexo,
topo circunflexo,
feixe plexo,
hormônio anexo,
tecido perplexo,
contato complexo.

sábado, 3 de maio de 2008

Cena de cinema

“Nina sou eu. Você deve ser Beto. Sou irmã de Pedro. Ele pediu para entregar isso a você”. (Estende o fino envelope pardo, ele o pega.) “Ele disse que eu deveria levar um embrulho. Não me disse o que era exatamente. Só falou em um pacote. Disse que você saberia do que eu estou falando. Engraçado isso porque eu não sei do que estou falando. Um envelope que não parece ter dinheiro dentro. Na verdade parece ter nada dentro de tão fino. Devo levar algo bem maior. E então, cadê o pacote do Pedro?” (Vai até o quarto. Volta com um pacote embrulhado com jornal) “Uma troca de encomendas. Música bacana que está tocando. Bacana mesmo. Quem é? Ahn? Morrissey? Nunca ouvi falar! The Smiths? Tem um filme com este nome, não é? Eles até casaram depois na vida real. Qual é o nome deles mesmo? Sim, o Pedro prometeu-me uns trocados se eu fizesse este favor. E você o que vai dar-me em troca?”. O beijo foi bom, não foi? E mais ainda tudo que seguiu. A garota bonita. Cuidava da sua casa e de você também. Fazia o seu jantar. Esperava por você. Massageava os seus pés. Tratava os seus calos. Você está surpreso pelo quê? Já deveria saber que este é o final para uma história sem papel principal. Desse mais valor. A estrela de seu filme queria reconhecimento. Demonstrações de importância fazem a diferença para uma mulher. Ei, esta não é aquela parte em que a mocinha vai embora? Tira tudo do armário, joga sobre a cama. Chora, descabela-se por minutos. As lágrimas secam no rosto borrado. Ela costumava usar olhos pintados. Há uma rota que segue dos olhos às faces, ao queixo. Roupas direto para a sacola. Emboladas umas às outras. Ficam sós os cabides no armário. Soca tudo no porta-malas. Chora ainda. Entra no carro. Dá a partida. Olha para a casa pela última vez. Pega a estrada. Para na encruzilhada. "Qual o lugar em que você não me encontrará? Talvez nem mesmo me procure". Chora mais um pouco. Decide-se. Escolhe o caminho da esquerda. Um outro carro toma o caminho da direita. E vai para algum lugar longe, longe para você, herói. Sem aviso prévio, nem bilhete, nem pista de onde vai estar. Nada nada para trás. Ele chega à casa e descobre que a mocinha pegou suas coisas e foi embora. Só os cabides ficaram pendurados. Os mesmo cabides que você entregou a ela quando foi morar em sua casa. Um doce convite seu, "eu quero você aqui em todos os dias". Na próxima vez pense melhor sobre o que é deixar a emoção ficar do lado de fora da porta. Dizer que amou dois meses depois já nada vale. Eu queria ter dito tudo no momento em que estava ocorrendo, mas você não estava aqui para ouvir. A validade expirou para quem jamais inspirou. O herói sai da casa, corre até o carro. Entra apressado. Liga o carro. Encosta a cabeça sobre o volante. Sussurra a pergunta "por quê". Sai em arrancada. Tenta achar a rota de fuga da mocinha. Apanha o maço de cigarros sobre o painel do carro. Alguns cigarros caem. Um fica entre os dedos. Não acende. Está nervoso. Mantém-no apagado. Pára na encruzilhada. Sai do carro, o motor ainda está ligado. Vai em direção ao caminho da esquerda. Abaixa-se. Vê as marcas de pneu na área fina do caminho. São recentes. Levanta-se, vai em direção ao caminho da direita. Abaixa-se. Vê as marcas de pneu. São mais recentes. Aprendeu com um índio, seu amigo, a ler pegadas, marcas de pneu e o que mais pudesse indicar pistas. Entra no carro. Vira à direita.