quarta-feira, 12 de março de 2008

Como salvar uma vida

Ah... Que preguiça de me levantar da cama. Eu tenho mesmo de levantar? Cinqüenta anos. Enfim chegaram. E como pesam. A coluna sente bem isso. Tenho de me levantar com cuidado. Um movimento errado e o hospital será o lugar mais desejado por mim para passar o aniversário. Dor física é ruim, e esta idade do condor não coopera. Que nada! Pior mesmo é sentir o peso e o vazio. Lembro que aos vinte e dois anos eu me perguntei se eu preferia a vida tranqüila e segura ou cheia de aventuras e incertezas. Optei pela primeira opção. Entre o trabalho que adoraria e não pagava bem e o trabalho bem pago que eu detesto, escolhi o que eu detesto. E detesto até hoje. Se eu tivesse optado pela segunda? Como eu estaria agora? Talvez, à esta hora, não tivesse uma esposa na cozinha preparando um bolo surpresa, que já não é surpresa para ninguém. É a mesma coisa todo ano. Um bolo de chocolate que já não é o meu predileto. Velinhas que apagam e acendem. Chatérrimas! Só mudam os genros e noras. São quatro. Dois filhos e duas filhas. Esta é a parte mais fácil de lembrar. Quando eram pequenos, viajar para o litoral era o mais perto que eu conseguia chegar de uma aventura. Brigas e mais brigas. Gostos muito diferentes. Amo, mas penso em deixá-los, é verdade. Penso em fugir. Penso em não ver os netos nascerem. Tenho saudades da época em que eu sonhava em ser guitarrista de uma banda de rock. A guitarra ficou para lá em prol da ambição de economista. Economizei até as emoções. Minha mãe deu a minha guitarra para o primo Lucas. Ele é cinco anos mais novo do que eu. Careca. Tem uma banda. Aderiu a moda dos carecas lustrados. Viaja pelo Brasil inteiro... De pub em pub. Alguns fãs... Esse sonho era meu que foi passado para ele quando recebeu a minha guitarra de bandeja. Sabe de uma coisa?! Eu deveria ter partido com aquela francesa! Louca. Hippie. E muito, muito gostosa. A ruiva de olhos verdes e cheiro de desejo. Costumava usavar jeans sem calcinha e uma camiseta regata, sem sutiã. Por cima usava uma camisa nos dias mais frios. Mas na maioria do tempo ela estava nua comigo. Era a delícia dos meus dias que pareciam perfeitos. Mas ela era louca demais. Os Baseados eram fatos reais em sua vida. Tive medo de ir com ela. Tive medo dos dias sem limites. De sonhos inteiros. Se eu não tivesse medo... Iria atrás dela agora! Nem sei se ela ainda vive, mas este parece ser um bom motivo para partir. Aproveitaria para aprender a falar francês. Foi assim que eu a conheci. Com desejo de falar francês. Eu deveria ensiná-la português e ela o francês. Aprendi na verdade a ouvi-la, principalmente seus desejos. Quantas noites passamos na praia? Ríamos muito. É tão bom rir. Ríamos de tudo. Tudo era bom. A cabeça vazia não fazia planos, não fazia contas, mas sentia tudo. Os dias tinham gosto. Tinham cheiro. E se eu fecho os olhos, volto ao passando e sinto. Era só o momento. Eu conseguia sentir cada segundo passar. Sabia ter emoção. Lembro do dia chuvoso. Andávamos abraçados enquanto as gostas de água nos refrescava. Eu desenhava nossa felicidade. Joguei os cadernos fora um tempo atrás. Também esqueci como se desenha. Desenho agora apenas cifrões com números à direita. Quanto mais dinheiro os clientes ganham, mais eu ganho. E todos ganham. E posso comprar o carro do ano. E posso trocar os móveis da casa. Estando novos e daí? Alguém irá usá-los e usarei outros. A esposa fica feliz e eu fico feliz. Fico feliz mesmo? Fico feliz que nada. Acaba que é só uma forma de eu tentar não lembrar das minhas escolhas. Pensar no que eu quero adquirir e traçar planos de como adquirir. Mas hoje não tem jeito. Cinqüenta anos é simbólico. É o ponto de parada na vida em que somos obrigados a pensar sobre ela. A vida pela vida. E se o saldo for negativo, hora de salvá-la. Será que dá para eu fugir pela janela?

2 comentários:

Anônimo disse...

Essa vida nada mais é do que a vida que ele escolheu...
Preferiu abolir às aventuras pra render-se aos bens capitalistas e hoje vive de comprar uma felicidade que se tornou artigo raro no supermercado que freqüenta. Muitas vezes prefiro apenas viver...apenas ser feliz e deixar de lado essa preocupação burocrática dos bens, do trabalho e da vida cotidiana de máquina humana e sou vista como "avoada". Qdo leio um conto deste tipo, vejo q estou certa e nada mais valioso do que viver, pura e simplesmente!
Adorei teu blog!
Bjossss

Anônimo disse...

Que perfeita descrição de vida.

Encantado com o texto. Complexo no ponto, e bom o suficiente para prender o leitor, parabéns ; D