quinta-feira, 24 de janeiro de 2008
De cabeça para baixo
O final da adolescência é marcado pelo recebimento das regalias adultas. Identidade. Carteira de motorista. Serviço Militar. Profissão. Festas. Embriaguez. “Proibido para menores de 18 anos” já não nos provoca abalos sísmicos. Em compensação, na minha época, já podíamos ser presos por uma menina assanhada. Fortes sentimentos e emoções, com intensos relacionamentos... Que nada! O meu final foi diferente. Preparações para o vestibular. Em casa não dava. Violão, televisão, aparelho de som, atari, vídeo cassete, sessão da tarde. Tinha de achar um outro lugar. E assim veio sorrateiramente o hábito de deixar-me estar horas e horas na biblioteca pública da cidade. Um bocado de livros havia por lá. Muitos chegaram àquelas prateleiras por meio de doações. Nem tanto por benevolência. Mais por praticidade. Melhor, por livramento. Geralmente, depois da morte do dono é que os livros chegavam lá. Em outras famílias, era questão de espaço. Os melhores vieram da coleção pessoal do professor Paschoal. Clássicos da literatura. Relíquias em várias línguas. Tinha uns até em latim. Entre um estudo e outro, eu olhava para eles. Depois do vestibular, voltava lá para apanhar um emprestado. Foi aí que a conheci. Cara fechada, de poucos amigos. Olhar vigilante. Parecia uma criança emburrada. Eu podia notar um quase bico naquele rosto. Ela nunca sorria. Como ela é bonita, pensava. Não poderia escapar da minha atenção. Gostava do mau-humor daquela Bibliotecária. Eu estava apaixonado por ela. Passei a ir todos os dias novamente. Mais de uma vez por dia até. Sempre vários livros emprestados. Pilhas. Tentava puxar assunto sobre o tempo, enquanto registrava meu empréstimo em todas as fichas à mão. Mas era muito rápida no atendimento. Eu nem conseguia dizer oi. Quanto mais dizer "que dia chuvoso". "Que calor". Ficava observando sua letra depois. Retilínia. Em um dos livros aprendi que a forma de escrever pode revelar seu jeito de ser. A letra dela indicava caráter intransigente, baixa flexibilidade nas negociações, possibilidade de respostas impulsivas. Ei, esse negócio funciona mesmo! É claro que eu nem lia todos os livros. Só lia os que poderiam trazer informações sobre ela ou que me fizessem imaginar ela. Li um guia de viagem. Roteiros românticos eram indicados. Ainda que não lesse todos, era a melhor desculpa para eu chegar perto dela. Sempre ela. No crachá estava escrito Maria das Graças. E que graça! Arrumando os livros na prateleira, eu também dava um jeito de me aproximar. Parecia um cachorro farejando o ar do seu perfume, fingindo estar lendo um livro. Moço, o livro está de cabeça para baixo. Uma criança notou meu estado de espírito. Mas no balcão ainda era melhor. Seu perfume infiltrava-se em mim. Fragrância floral fresca e cítrica. Bem ela: agridoce. É bonita, pensava. Silêncio por silêncio. Muitas horas ali a colher fagulhas de atenção. Afastei-me um pouco dos amigos, mas aproximei-me do meu alvo, que até então me ignorava. Me contentava, no entanto, com sua presença. Sua agridoce presença. Arriscava um bom-dia e silêncio eu ouvia. Um dia realmente fiquei chateado. Ela trocou o perfume! Como ela foi capaz de fazer isso comigo?! Quebrei o silêncio. Mudou de perfume? O quê disse?! Mudou de perfume? Você notou. Sim. Mas você sabe que isso não se faz? Como?! Não faz parte das regras mudar de perfume. Regras?! Uma mulher deve manter-se fiel ao seu perfume. É uma marca registrada. Um homem que a tenha amado ou simplesmente conhecido, jamais a esquecerá. É mesmo? É mesmo, todo mundo sabe. Eu acho que você está lendo livros demais. Ah... minha azedinha. A lembrança de um perfume conta tantas histórias... Esta última parte eu só pensei. Não tive coragem para ir muito além. Mas é fato que depois daquele dia uma grande evolução ocorreu. Peguei ela olhando para mim por cima do óculos. E quando levantei o rosto e virei-me para ela, rapidamente baixou os olhos. Mas eu vi e sorri muito por dentro. Outros dias se passaram. Silêncio por silêncio. Já havia, no entanto, olhares cruzados. Quebrou o silêncio. Você lê muito mesmo. Gaguejei. Éééééé... Não podia perder a oportunidade de jeito nenhum! Respirei fundo! Não pisquei. Quer ir ao cinema comigo? Ela sorriu. Sim.
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